16 novembro 2009

||| O PALCO... - 2



O senhor regressou ao palco, imperial e soberbo. O primeiro impulso, depois do que ouviu dos bastidores, foi punir os traidores, mas recuou no último momento, mostrando humanismo e piedade.


«Sabes, meu azougado e escanhoado discípulo, o importante é nunca trair o chefe. E, para isso, devemos ter sempre boas notícias para lhe dar. Nunca o atacar... É por isso que urge dominar os dissidentes e impedi-los de transmitir ideias que possam confundir o povo e ameaçar o que valem os nossos votos, os quais, como sabes, são a única maneira de se chegar ao poder. O que fizeste tu nesse sentido, para não me trair?”.
- «Mas, Senhor, compreendei... a minha função não é controlar as notícias, é apenas vertê-las, disseminá-las, melhorá-las, assim fiz com o nosso programa eleitoral, que não era o vosso...”.
- «Será, se assim o dizes...» - interrompeu-o o imperador e senhor. «Mas o essencial para o poder é defender o indefensável, exacerbadamente, com fanatismo, nem que por isso tenhais de vos transformar em patetas. Em última análise, quando não é possível controlar as notícias ou impor a nossa visão fanatizada, a vossa função é desacreditar os mensageiros que se opõem ao nosso programa... Mas isso, nem isso vós fostes capazes de fazer...”.
- «Mas, perdoai-me, isso não será pior do que aqueles coronéis!...», retorquiu o azougado escanhoado.
- «É mais moderno, é mais jovem..., para usar a vossa linguagem mais adolescente», disse o imperador, fixando a surda-muda menina do rimel, ali meio escondida e sem até aí botar qualquer palavra. E saiu do palco.
A importante reflexão foi assim imprevistamente interrompida e a plateia protestou, com um profundo shhhhhhhh!!!.....
A menina do rimel, olhando ansiosa e constrangida para os escanhoados, procurou então descontrair o momento: «Isto pareceu-me mais uma tentativa de descrever metaforicamente o actual poder... E o poder será dos jovens. Tem de ser!!!...».
O escanhoado da música hesitou em comentar, parecia o Guterres: «Cá para mim e hoje em dia, isto seria impossível..., agora somos jovens mas amanhã já não seremos». E sustentou-se em pauta segura: «E nós, afinal, ainda nem sequer tomamos decisões..., não temos qualquer poder!».
Seguiram-se segundos de violento silêncio e apagaram-se as luzes do palco, enquanto se ouviam frenéticos aplausos.

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O facho de luz apontou para o canto, onde aparecia a menina do rimel, de laços traçados no ombro, muito senhorial e altiva, pé ante é, assumindo-se às luzes mais fortes do palco.
- «Nós tomamos, decisões, tomamos sim senhora, mesmo que estejam erradas...», disse ela e acentuou: «É preciso não hesitar e tomar decisões. Pôr toda a gente na ordem. E há um erro fundamental nesta ópera, que é o facto de se partir do princípio de que a corte ama o seu imperador porque este tem grandes virtudes, quando o amor ao poder se baseia, afinal em interesses. Eles estão amarrados ao poder...».

- «É verdade - azougou-se o escanhoado, ao som de música de ópera. «Na verdade - frisou ele - a defesa de uma ideia sem ideias só se explica por haver interesses, por exemplo, um tacho...”
- «Não é esse o nosso caso...», alegou a menina do rimel, compondo os laços que lhe caíam do ombro.
- «Não será?...», interrogou-se outro dos escanhoado.
- «Eu acho isso demasiado simplista e até autoritário, bem pouco democrático, até será um pouco perigoso...», opinou um dos outros escanhoados.
- «É gente, isto parece uma conspiração contra mim. Afinal, em que é que estamos, por não ganharmos isto já não tem significado, eu já não existo?», exasperou-se a menina do rimel.
- «Tu existes, és uma personagem....», disse um escanhoado.
- «Bravo, eu sou uma personagem...», exclamou a menina do rimel.
Caiu o pano.

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